domingo, janeiro 03, 2021

A cultura do estupro


O termo “cultura do estupro” surgiria entre os anos de 1960 e 1970, época de grandes mobilizações feministas nos EUA, Europa e, apesar do regime de Ditatura Militar instaurado no Brasil, aqui também tivemos diversas manifestações em favor da mulher.

O lançamento do livro da feminista americana, Susan Browmiller, Against our Will ("Contra nossa Vontade", sem tradução para o português), foi um marco na defesa dos direitos das mulheres. A feminista defendia a ideia de que o estupro não era algo ligado ao desejo sexual, mas ao poder e dominação. 

Antes disso, as mulheres estupradas eram consideradas culpadas e os homens, doentes. Elas precisariam provar que tentaram resistir ao estuprador e, dependendo da forma como se vestiam, podiam ser consideradas culpadas. Sua vida sexual pregressa também contava como fator atenuante, ou ainda o fato de ter vários parceiros poderia querer dizer que consentiam o ato. Havia ainda observações sexistas em livros jurídicos que diziam que a mulher “tem tendência a mentir” e, por isso, a denúncia não era levada a sério.

Isso há 40 anos.

Hoje, ainda vivemos a mesma cultura do estupro, as mulheres ainda são julgadas pelas roupas que vestem, pelo comportamento que adotam, pelos lugares que frequentam, pelo que bebem e até pela maneira como andam. Tudo isso pode ser considerado ‘motivo’ para o estupro. A sociedade entoa em alto e bom som: “Se estivesse em casa, não aconteceria isso! ”, “Se tivesse ido à Igreja, não aconteceria isso! ”, “Se não usasse roupa curta...”, “Se não bebesse...”, “Se...”, são muitos “Se’s”.

A sociedade brasileira é patriarcal por atavismo, existe uma ideologia de papéis de gênero arraigada de tal forma, que anos de debates feministas ainda não conseguiram desvanecer. 

As pessoas compactuam com essa cultura, às vezes, sem perceber. É a mídia, são as novelas, a publicidade, revistas, os padrões impostos nas entrelinhas, as personagens estereotipadas, uma tentativa de modelar comportamentos e adequar aos respectivos papéis de gênero. Onde o indivíduo precisa se adequar ao seu papel de homem ou mulher para que incidentes não aconteçam.

É a banalização da mulher, que é vista como objeto de desejo, um mero pedaço de carne suculenta que tem como objetivo satisfazer ao homem.

O estupro só passou a ser crime contra a dignidade e liberdade sexual a partir de 2009, até então era considerado crime de ação privada contra os costumes. Sim, contra os costumes.

Nesse caso, leia-se: crime contra os costumes machistas, pois era crime apenas no caso de um homem atentar contra uma mulher, e só era um crime pois feria os direitos de marido ou de pai do homem em questão. O fato de a mulher ter sido violentada só importava porque seria vergonhoso para o pai ou marido, não por ela ter sofrido. A lei mudou, mas a mentalidade geral, não.

Até quando?

Quantas de nós já não sentiram nojo por ouvir cantadas maldosas na rua, por ter sido bolinadas em transporte público? Ou nunca temeram ser simpáticas demais com um colega e ser mal interpretada ou trocaram de roupa por achar que aquela ficara muito curta ou justa ou decotada e tinham medo do que poderia acontecer?

As mulheres lutam pelos seus direitos desde sempre, lutaram pelo voto, lutaram para trabalhar sem permissão do marido, pelo direito ao divórcio, direito a assumirem cargos públicos, a usarem minissaia, direito a estudar, a criar seus filhos sozinhas, a pensar, a sair sozinhas, a dirigir, a ter sua própria conta em banco. 

E hoje, em pleno século XXI, ainda precisam lutar pela equiparação salarial, pelo direito a orientação sexual que quiserem, por poderem andar sozinhas nas ruas, por não serem estupradas - e poderem abortar caso sejam -, por não precisar ter filhos se não quiserem, por não querer casar, por não ser obrigadas a se adequar para estar inseridas. Não deveriam precisar.

A cultura do estupro só é possível onde há machismo, sexismo, onde as desigualdades entre os gêneros são tão grandes e patriarcais, que a desumanização da mulher se torne algo normal. A mulher não merece ser estuprada, ela não é um objeto, ela não pertence ao homem, ou à Igreja, ou à família, ou a ninguém.

Ela é um ser humano e não veio ao mundo para satisfazer aos caprichos de homens que precisam dominar para se sentirem homens. Sem generalizações, é claro!

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