segunda-feira, dezembro 28, 2020

A menina que fugia


Conhecemos o contexto histórico por trás dos refugiados sírios, os relatos dramáticos, vemos imagens, lemos depoimentos, acusações, críticas, sugestões, questões políticas, religiosas e humanitárias, tudo isso tem sido mostrado pela mídia e está em todas as redes sociais. Muito sabemos sobre essa guerra civil que iniciou em 2011 e já matou milhares de pessoas, deixando mais de 4 milhões de refugiados, mas isso é só o que nos contam - ou vemos na TV, no conforto dos nossos sofás, longe da realidade cruel de uma guerra.

Imagine que você é uma criança de seis anos, uma menina comum, que frequenta a escola, tem amigos com os quais gosta de brincar, pratica sua religião e vive em paz com sua família em seu país de origem, a Síria. Sim, você é uma criança síria e vive lá, ou vivia...

Uma Síria governada com mão de ferro por Bashar al-Assad, eleito e reeleito há mais de três décadas. Um país marcado por conflitos há séculos, com um governo ditador, onde política e religião são motivos de revoltas. Uma região que foi sede de várias batalhas, foi dividida e unificada várias vezes, invadida e governada por diversos povos e que hoje é palco de um caos instaurado.

O povo sírio está cansado disso tudo, quer paz, alguns não conseguem compreender porquê seu país está em guerra e porquê precisam sair dele. Mas eles, os adultos, acompanharam os acontecimentos, nem todos sabem quando e como começou essa guerra, mas sabem que a vida que conheciam acabou. No entanto, você, a criança de seis anos, não.

Tudo que sabe é que, de uma hora para outra, não pode mais sair para brincar com seus amiguinhos, pois a praça onde se encontravam não existe mais. Que não pode mais ir à escola aprender a somar ou multiplicar, pois ela está debaixo de escombros. Que não consegue dormir à noite com medo dos bombardeios atingirem sua casa e machucarem a mamãe ou o papai, mesmo que nem saiba o significado da palavra “bombardeio” ainda.

Precisa viver presa dentro de casa com medo, medo de tudo. Aos seis anos, não sabe o que são e nem porquê acontecem essas lutas, mortes, tiros, bombas barulhentas. Tanta dor, sofrimento e um mundo inteiro vai ao chão, o seu mundo. Um mundo que você não reconhecerá mais quando crescer, se crescer. Sua identidade está sendo roubada, sua cultura dilacerada, suas raízes arrancadas da terra à força, e você nada pode fazer para estancar tanto choro jorrando.

A casa de sua família é atingida uma, duas, três, quatro vezes, destruída completamente, você se salva e foge. Muda-se para uma das tendas precárias improvisadas em meio a outras centenas de famílias que suplicam por piedade. Ferida, foragida, faminta, escondendo-se do horror impregnado na pele, na alma. Mas sabe que não pode ficar, não suportará muito tempo, o perigo ainda é iminente.

E agora, que não há mais como retroceder, que não há mais para onde ir, foge novamente. Só que, dessa vez, a única coisa que sabe é que está a caminho de algum lugar, qualquer lugar onde não existam esses barulhos horríveis ensurdecedores das bombas e, quem sabe, possa parar de fugir, voltar a brincar, e as coisas possam fazer sentido novamente. Você está indo embora do seu país sozinha e nada faz sentido.

Ela é apenas mais uma das milhares de pessoas que estão fugindo do país, que se aglomeram em navios, barcos, botes e outras embarcações que não suportam o peso de tanto desespero, gente que tenta, num golpe de sorte, encontrar gente que seja capaz de ajudar, pessoas devastadas de tanto se esconder e fugir da miséria que tomou sua terra natal, refugiados da atual guerra civil da Síria.

Essa criança não sabe o que é uma guerra, não o seu conceito, aquele que nós aprendemos na escola, que fala dos motivos políticos/religiosos de seu estopim, o porquê de pessoas se digladiarem dia e noite e não permitirem que ela possa acordar em sua cama quentinha e ter mais um dia comum.

Mas ela aprendeu como é a guerra e todo sofrimento que pode causar, conheceu sua pior face e ela, a menina que fugiu, nunca mais será a mesma.

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